quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Presente de Deus


Cecília carregava uma mochila rosa da Barbie e estava com o costumeiro uniforme vermelho e branco da escola. Assim que passou pelo portão do colégio, com o cabelo perfeitamente arrumado em uma trança muito bem feita, virou-se e acenou sorrindo para sua mãe, que naquele dia havia lhe deixado na escola. Assim que recomeçou a andar, longe dos olhos da mãe, Cecília desamarrou a trança e bagunçou o cabelo, agora com um sorriso ainda mais radiante.
Aquela garotinha, com os cabelos revoltos e dando pequenos pulos em direção a sala de aula, não abandonava nunca seu sorriso. Cecília não suportava cabelos bem feitos, batom ou hidratante. Ela gostava mesmo era de sentir o vento bater no rosto, não se preocupar com os sapatos enquanto corria e sentir os pingos de chuva, sem medo de molhar as roupas caras. Cecília nunca se preocupava com nada quando brincava no parquinho da escola e chegava em casa sempre suja de lama, deixando sua mãe horrizada. Cecília sempre foi considerada rebelde por sua família, principalmente sua mãe que queria transformá-la em uma menina muito bem arrumada e educada e ela era exatamente o contrário: vibrante, falante e alegre, não era tão bonita fisicamente e seu cabelo era desajeitado, mas seus olhos... ah, os olhos de Cecília sempre tão vivos e atento... A tenacidade com que compreendia tudo e todos a seu redor, a inteligência e principalmente sua alegria de viver, transformavam Cecília em uma garota encantadora.
Nesse mesmo dia, enquanto Cecília desfazia sua trança, uma outra garotinha, chamada Elisa, que havia se mudado há pouco tempo para o mesmo bairro de Cecília, estava a caminho da escola com a sua mãe. Mais cedo, ela havia feito de tudo para não ir à escola: fingiu que estava doente, chorou, ficou com raiva, mas nada adiantou. Não é que Elisa seja uma garota birrenta, ela não queria ir à escola porque estava com medo: novos alunos sempre têm dificuldades em fazer novos amigos e ela é uma menina muito doce, mas muito tímida. Elisa é filha de pais muito apaixonados e sua família é muito unida, ela cresceu entre muitos presentes e muito carinho, tornou-se uma garotinha muito amável e inteligente, mas não sorri muito. Elisa não é triste, ela apenas é muito sonhadora e prefere estar sozinha em seu mundo perfeito de sonhos. Elisa adora ir à festas, mas nunca dança, ela passa todo o tempo observando as pessoas: Elisa gosta de adivinhar os gestos, a maneira de sorrir e o jeito de falar das pessoas, depois anota tudo e monta personagens para suas histórias, que ninguém nunca leu. Ela sorri sozinha, brinca sozinha e se fosse filha única – o que ela não é, tem mais dois irmãos – seus pais não seriam incomodados nunca com gritos, música alta ou correria pela casa. Elisa é calma, estuda música, uma vez que achou que não iria se dar bem dançando ballet, e sempre que alguém a elogia, ela cora de leve e inclina a cabeça um pouquinho para baixo.
Elisa passou pelo portão da escola depois de educadamente se despedir da mãe e perscrutou com seus enormes olhos castanhos tudo que viu depois do portão. E gostou do que viu. Elisa achou a escola grande demais, devia ter alunos demais e isso certamente lhe ajudaria, pelo menos um pouco, a passar despercebida.
Assim que Elisa entrou na sala de aula – que por uma coincidência do destino era a mesma sala de aula de Cecília – todos os alunos olharam para ela. Elisa nunca ficou tão apavorada com tamanha atenção e caminhou rapidamente para o primeiro lugar que estava vazio , que por um empurrãozinho de Deus, era o lugar ao lado da carteira de Cecília.
O contraste que as duas formaram ali naquele primeiro dia, sentadas na sala de aula, era algo absolutamente extraordinário. As duas eram extremamente diferentes. Cecília com seu cabelo revolto estava esfuziante, tagarelava sobre sua experiência do dia anterior, quando estava fazendo massinha de modelar com trigo, enquanto todos prestavam atenção embevecidos. Elisa muito quieta ao lado, sem conhecer ninguém e até com certo receio de olhar para os lados, permaneceu muito ereta, com as mãos pousadas no colo, mas ouvindo a conversa de Cecília e muito interessada em sua experiência.
A professora chegou e todos se calaram para o início da aula.
O fato de Elisa sentar-se ao lado de Cecília nesse primeiro dia, facilitou para que as duas invariavelmente passassem, a pedido da professora, a formar dupla durante as aulas.
E esse foi o inicio de uma profunda e sincera amizade.
Foi a Cecília quem ensinou Elisa que elas também podiam fazer coisas que só os meninos faziam como brincar de carrinho ou jogar futebol. E a Elisa mostrou seus livros para Cecília, que descobriu que amava ler.
Elisa e Cecília passavam horas conversando, lendo ou brincando, contavam piadas e riam alto, até das que não entendiam.
Roubavam doces na cozinha e cantavam errado juntas, usando colheres de pau como microfone. Seus livros favoritos eram A Ilha Perdida e Açucar Amargo. Cecília até mostrou para Elisa que ela podia não ter jeito para ballet, mas que havia outros tipos de música para dançar.
Cecília e Elisa passavam o tempo todo juntas, mas foi quando os pais de Cecília se divorciaram que ela percebeu que Elisa era a pessoa no mundo que mais a compreendia. Na noite em que o pai de Cecília foi embora, Elisa passou a noite com ela jogando Damas e vendo filmes. Não tentou consolá-la ou fazê-la falar, apenas estava ali. E Cecília podia sentir que Elisa estava entregando seu apoio, de maneira muda, para não pressioná-la. E quando Cecília começou a chorar, no meio de Karate Kid, ainda assim Elisa não disse nada, mas quando Cecília entre lágrimas olhou para ela, percebeu que a amiga também chorava. Naquela noite, as duas dormiram no tapete do chão do quarto de Cecília, abraçadas, sem ao menos terem se falado, mas dizendo tudo que precisavam através das lágrimas que choraram juntas.
As duas enfrentaram muitas dificuldades, como o dia em que o coelho de Elisa morreu, a prova de matemática no final do ano, as temidas visitas ao médico e o medo de injeções, o corte de seus cabelos compridos – que as duas amavam – por causa de um surto de piolhos, e suportaram juntas até o horrível dia do novo casamento do pai de Cecília.
Um dia, Elisa se meteu numa briga durante o jogo de futebol na escola e Cecília defendeu a amiga. Com uma lealdade surpreendente, suportou todos os puxões de cabelo, pontapés e tapas que levou das meninas mais velhas e depois que a briga foi apartada, permaneceram juntas na secretaria da escola, enquanto seus pais eram chamados. As duas sentadas na secretaria, estavam sujas, com o cabelo emaranhado e cheias de arranhões, mas sorriam furtivamente uma para a outra. As duas sentindo um profundo orgulho uma da outra.
Quando uma caía, a outra nunca ria. Quando uma fazia besteira, a outra sempre estava lá para apoiar ou tentar esconder a tal besteira dos outros.
Nunca entre as duas houve um silêncio embaraçador. Elas podiam ficar horas sem se falar e ainda sentiam-se como cúmplices.
Eram as melhores amigas do mundo e fizeram um pacto para serem melhores amigas para sempre.
As duas foram crescendo, outros interesses foram aparecendo, mas continuavam sempre juntas, dividindo tudo. Cecília agora era uma mocinha que gostava de tênis All-Stars, nunca usava saia, ainda tinha aquela constante vibração de vida e alegria emanando dela e ainda possuía aquele mesmo cabelo revolto, enquanto Elisa adorava vestidos e descobriu os encantos da maquiagem e dos perfumes.
Elisa notou antes que Cecília, que elas já não eram garotinhas. Ela percebeu que os garotos da escola olhavam-na de maneira diferente e logo apareceram cartas de admiradores, flores e chocolates. Cecília achava tudo isso uma bobagem e não se interessou em prestar atenção a isso. Elisa é que corava ao receber um elogio, enquanto Cecília revirava os olhos impaciente.
Mas Elisa não foi a primeira a se apaixonar. Uma noite, Cecília pulou a janela do quarto de Elisa, para lhe contar que havia sido beijada pela primeira vez e como tinha colocado o garoto abusado para correr a chutes e ponta-pés. Embora Cecília tivesse negado veementemente, Elisa sabia que a amiga tinha se apaixonado e só sorriu, pedindo para ela contar em detalhe o que tinha acontecido.
Embora as bonecas e os brinquedos estivessem ficando cada vez mais de lado, a amizade das duas nunca enfraqueceu, nunca esfriou. Cecília amava em Elisa aquela capacidade doce e serena de cuidar de si mesma, dos outros, de uma causa, de uma idéia... e Elisa amava a maneira como Cecília era forte, decidida e corajosa.
Em uma bonita manhã de sol, Elisa acordou sem imaginar que aquele dia seria um dia para grandes mudanças para sua vida.
Os pais de Elisa reuniram a família e anunciaram com olhos arregalados de preocupação, que haviam decido se mudar, o pai de Elisa recebera uma proposta de emprego que não poderia recusar e toda a família se mudaria, para longe.
Elisa ouviu sem mover um músculo do rosto, de repente as lembranças da escola, da sua cidade, da biblioteca que tanto amava e o rosto de Cecília tomaram sua mente. Uma dor que começou pequena dentro dela começou a crescer e rapidamente se tornou tão grande que não coube dentro de Elisa, através dos seus olhos, escorregou pelo rosto.
E de repente a necessidade de ver Cecília foi tão grande que ela saiu correndo, sem esperar o fim da conversa. Mas ainda pôde ouvir uma última frase, que continuou ecoando em seus ouvidos: “iremos em um mês...”
Quando contou para Cecília chorando o que estava acontecendo, Cecília como sempre recorreu ao seu lado rebelde: deu várias sugestões de como elas poderiam fugir, como Elisa podia morar com ela e sua mãe... tantas sugestões e as duas sabiam que nenhuma delas ia salvá-las do futuro iminente: iriam se separar, não estariam mais juntas, todos os dias...
Choraram, tanto como nunca tinham chorado antes.
Os dias que se seguiram para as duas, estavam sem nenhuma cor.
O dia que Elisa partiu, para Cecília, foi o pior dia da sua vida. Elas ficaram abraçadas muito tempo, antes haviam levado horas para decidir com quem ficaria todos os objetos e livros que dividiam, uma querendo deixar com a outra um pedacinho de si.
Prometeram escrever sempre, nunca perder o contato e se encontrarem em todas as férias. E a promessa era verdadeira e sincera.
Mas o tempo, ah o tempo, ele prega peças nas vidas de todos.
Elisa e Cecília se corresponderam sim, por anos. Mas estas cartas foram chegando cada vez mais com um espaço de tempo maior. A saudade que as duas sentiam era grande e a amizade era genuína, mas não dividir o dia-a-dia e não conhecerem as mesmas pessoas foi ficando cada vez mais difícil.
Até que sem que as duas se dessem conta, o tempo havia se encarregado de fazê-las se acostumar a serem sozinhas novamente.
E as cartas pararam de chegar.
A saudade agora estava amena e elas se lembravam uma da outra apenas como uma peça muito importante do passado.
Anos depois, Cecília já adulta e com dois filhos, eram gêmeos, uma menina e um menino, que possuíam seus meus cabelos revoltos e o mesmo olhar vibrante, Cecília estava a caminho da escola. Havia se mudado para aquela cidade grande há dois anos, quando ela e seu marido decidiram morar mais perto da avó paterna das crianças, que estava doente.
Cecília dirigia e olhava pelo retrovisor uma vez ou outra, para certificar-se de que as crianças estavam conversando e não brigando, o que era muito comum.
Parou quando o farol ficou vermelho e estava aguardando os pedestres atravessarem a rua, quando Elisa parou seu carro ao lado do de Cecília. Foi Cecília quem a reconheceu primeiro e a chamou, gritando seu nome. Quando Elisa a reconheceu, um enorme sorriso se formou em seu rosto, as duas davam pequenos gritinhos de alegria, assim como faziam quando crianças.
O farol abriu. As buzinas atrás das duas começaram a soar e Elisa fez um sinal para Cecília de que iria estacionar.
Quando as duas se abraçaram, com lágrimas caindo silenciosamente pelos seus rostos e tocando seus ombros, foi como se o tempo não tivesse passado. Como se sempre tivessem estado uma ao lado da outra. Ali na calçada onde estão paradas inconscientes do mundo ao redor, as duas são almas gêmeas que se reencontram e não precisavam estar por perto, todo o tempo, para sentir que se amavam. Era mesmo uma amizade para sempre, afinal. Mesmo com a distância e a falta de contato.
Conversaram muito. Cecília achou Elisa tão linda, que não acreditou que ela nunca se casou e ficou muito orgulhosa quando soube que ela era uma executiva muito importante do ramo jornalístico. E Elisa, ao conhecer os gêmeos, não conseguia conciliar que aquela garotinha travessa que planejou viajar o mundo todo e ser astronauta agora era uma pacata e estável mãe de família.
Ao se despedirem no final da tarde, surgiu uma pontada de dor no coração das duas. Quantos anos se passaram sem que ao menos conversassem! Trocaram os números de celulares e endereços de e-mail.
E cada uma, voltou para sua vida.
As duas, ao mesmo tempo, lembrando uma da outra com um sorriso crescendo de dentro para fora até se libertar nos lábios... Prometendo silenciosamente a si mesmas que fariam de tudo para não perderem o contato de novo.
Elisa se foi, sonhando com uma família, bonita como a de Cecília e sonhando em ter em seus olhos aquele mesmo calor materno que viu nos olhos vibrantes de Cecília.
E Cecília se foi sonhando com sua vida profissional, imaginando que gostaria de conquistar independência e estabilidade, como Elisa.
E as duas perdidas em pensamentos, simplesmente descobriram: Ainda eram as mesmas meninas. Cada uma com suas qualidades peculiares, mas cada uma sentindo um enorme orgulho da outra.
Totalmente diferentes, mas profundamente ligadas, como almas gêmeas.
E por isso, eram duas peças de um encaixe perfeito no universo.
Amigas para sempre.

Um comentário:

Otávio M. Silva disse...

Que Bela história de amizade. È notópria sua habilidade para fazer crônicas e tornar o comum uma obra de arte.

Seria ótimo ter sua opinião sobre meu novo projeto:
http://himperiter.blogspot.com.br
Um Capítulo novo toda sexta.

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