quarta-feira, 28 de dezembro de 2011 1 comentários

Presente de Deus


Cecília carregava uma mochila rosa da Barbie e estava com o costumeiro uniforme vermelho e branco da escola. Assim que passou pelo portão do colégio, com o cabelo perfeitamente arrumado em uma trança muito bem feita, virou-se e acenou sorrindo para sua mãe, que naquele dia havia lhe deixado na escola. Assim que recomeçou a andar, longe dos olhos da mãe, Cecília desamarrou a trança e bagunçou o cabelo, agora com um sorriso ainda mais radiante.
Aquela garotinha, com os cabelos revoltos e dando pequenos pulos em direção a sala de aula, não abandonava nunca seu sorriso. Cecília não suportava cabelos bem feitos, batom ou hidratante. Ela gostava mesmo era de sentir o vento bater no rosto, não se preocupar com os sapatos enquanto corria e sentir os pingos de chuva, sem medo de molhar as roupas caras. Cecília nunca se preocupava com nada quando brincava no parquinho da escola e chegava em casa sempre suja de lama, deixando sua mãe horrizada. Cecília sempre foi considerada rebelde por sua família, principalmente sua mãe que queria transformá-la em uma menina muito bem arrumada e educada e ela era exatamente o contrário: vibrante, falante e alegre, não era tão bonita fisicamente e seu cabelo era desajeitado, mas seus olhos... ah, os olhos de Cecília sempre tão vivos e atento... A tenacidade com que compreendia tudo e todos a seu redor, a inteligência e principalmente sua alegria de viver, transformavam Cecília em uma garota encantadora.
Nesse mesmo dia, enquanto Cecília desfazia sua trança, uma outra garotinha, chamada Elisa, que havia se mudado há pouco tempo para o mesmo bairro de Cecília, estava a caminho da escola com a sua mãe. Mais cedo, ela havia feito de tudo para não ir à escola: fingiu que estava doente, chorou, ficou com raiva, mas nada adiantou. Não é que Elisa seja uma garota birrenta, ela não queria ir à escola porque estava com medo: novos alunos sempre têm dificuldades em fazer novos amigos e ela é uma menina muito doce, mas muito tímida. Elisa é filha de pais muito apaixonados e sua família é muito unida, ela cresceu entre muitos presentes e muito carinho, tornou-se uma garotinha muito amável e inteligente, mas não sorri muito. Elisa não é triste, ela apenas é muito sonhadora e prefere estar sozinha em seu mundo perfeito de sonhos. Elisa adora ir à festas, mas nunca dança, ela passa todo o tempo observando as pessoas: Elisa gosta de adivinhar os gestos, a maneira de sorrir e o jeito de falar das pessoas, depois anota tudo e monta personagens para suas histórias, que ninguém nunca leu. Ela sorri sozinha, brinca sozinha e se fosse filha única – o que ela não é, tem mais dois irmãos – seus pais não seriam incomodados nunca com gritos, música alta ou correria pela casa. Elisa é calma, estuda música, uma vez que achou que não iria se dar bem dançando ballet, e sempre que alguém a elogia, ela cora de leve e inclina a cabeça um pouquinho para baixo.
Elisa passou pelo portão da escola depois de educadamente se despedir da mãe e perscrutou com seus enormes olhos castanhos tudo que viu depois do portão. E gostou do que viu. Elisa achou a escola grande demais, devia ter alunos demais e isso certamente lhe ajudaria, pelo menos um pouco, a passar despercebida.
Assim que Elisa entrou na sala de aula – que por uma coincidência do destino era a mesma sala de aula de Cecília – todos os alunos olharam para ela. Elisa nunca ficou tão apavorada com tamanha atenção e caminhou rapidamente para o primeiro lugar que estava vazio , que por um empurrãozinho de Deus, era o lugar ao lado da carteira de Cecília.
O contraste que as duas formaram ali naquele primeiro dia, sentadas na sala de aula, era algo absolutamente extraordinário. As duas eram extremamente diferentes. Cecília com seu cabelo revolto estava esfuziante, tagarelava sobre sua experiência do dia anterior, quando estava fazendo massinha de modelar com trigo, enquanto todos prestavam atenção embevecidos. Elisa muito quieta ao lado, sem conhecer ninguém e até com certo receio de olhar para os lados, permaneceu muito ereta, com as mãos pousadas no colo, mas ouvindo a conversa de Cecília e muito interessada em sua experiência.
A professora chegou e todos se calaram para o início da aula.
O fato de Elisa sentar-se ao lado de Cecília nesse primeiro dia, facilitou para que as duas invariavelmente passassem, a pedido da professora, a formar dupla durante as aulas.
E esse foi o inicio de uma profunda e sincera amizade.
Foi a Cecília quem ensinou Elisa que elas também podiam fazer coisas que só os meninos faziam como brincar de carrinho ou jogar futebol. E a Elisa mostrou seus livros para Cecília, que descobriu que amava ler.
Elisa e Cecília passavam horas conversando, lendo ou brincando, contavam piadas e riam alto, até das que não entendiam.
Roubavam doces na cozinha e cantavam errado juntas, usando colheres de pau como microfone. Seus livros favoritos eram A Ilha Perdida e Açucar Amargo. Cecília até mostrou para Elisa que ela podia não ter jeito para ballet, mas que havia outros tipos de música para dançar.
Cecília e Elisa passavam o tempo todo juntas, mas foi quando os pais de Cecília se divorciaram que ela percebeu que Elisa era a pessoa no mundo que mais a compreendia. Na noite em que o pai de Cecília foi embora, Elisa passou a noite com ela jogando Damas e vendo filmes. Não tentou consolá-la ou fazê-la falar, apenas estava ali. E Cecília podia sentir que Elisa estava entregando seu apoio, de maneira muda, para não pressioná-la. E quando Cecília começou a chorar, no meio de Karate Kid, ainda assim Elisa não disse nada, mas quando Cecília entre lágrimas olhou para ela, percebeu que a amiga também chorava. Naquela noite, as duas dormiram no tapete do chão do quarto de Cecília, abraçadas, sem ao menos terem se falado, mas dizendo tudo que precisavam através das lágrimas que choraram juntas.
As duas enfrentaram muitas dificuldades, como o dia em que o coelho de Elisa morreu, a prova de matemática no final do ano, as temidas visitas ao médico e o medo de injeções, o corte de seus cabelos compridos – que as duas amavam – por causa de um surto de piolhos, e suportaram juntas até o horrível dia do novo casamento do pai de Cecília.
Um dia, Elisa se meteu numa briga durante o jogo de futebol na escola e Cecília defendeu a amiga. Com uma lealdade surpreendente, suportou todos os puxões de cabelo, pontapés e tapas que levou das meninas mais velhas e depois que a briga foi apartada, permaneceram juntas na secretaria da escola, enquanto seus pais eram chamados. As duas sentadas na secretaria, estavam sujas, com o cabelo emaranhado e cheias de arranhões, mas sorriam furtivamente uma para a outra. As duas sentindo um profundo orgulho uma da outra.
Quando uma caía, a outra nunca ria. Quando uma fazia besteira, a outra sempre estava lá para apoiar ou tentar esconder a tal besteira dos outros.
Nunca entre as duas houve um silêncio embaraçador. Elas podiam ficar horas sem se falar e ainda sentiam-se como cúmplices.
Eram as melhores amigas do mundo e fizeram um pacto para serem melhores amigas para sempre.
As duas foram crescendo, outros interesses foram aparecendo, mas continuavam sempre juntas, dividindo tudo. Cecília agora era uma mocinha que gostava de tênis All-Stars, nunca usava saia, ainda tinha aquela constante vibração de vida e alegria emanando dela e ainda possuía aquele mesmo cabelo revolto, enquanto Elisa adorava vestidos e descobriu os encantos da maquiagem e dos perfumes.
Elisa notou antes que Cecília, que elas já não eram garotinhas. Ela percebeu que os garotos da escola olhavam-na de maneira diferente e logo apareceram cartas de admiradores, flores e chocolates. Cecília achava tudo isso uma bobagem e não se interessou em prestar atenção a isso. Elisa é que corava ao receber um elogio, enquanto Cecília revirava os olhos impaciente.
Mas Elisa não foi a primeira a se apaixonar. Uma noite, Cecília pulou a janela do quarto de Elisa, para lhe contar que havia sido beijada pela primeira vez e como tinha colocado o garoto abusado para correr a chutes e ponta-pés. Embora Cecília tivesse negado veementemente, Elisa sabia que a amiga tinha se apaixonado e só sorriu, pedindo para ela contar em detalhe o que tinha acontecido.
Embora as bonecas e os brinquedos estivessem ficando cada vez mais de lado, a amizade das duas nunca enfraqueceu, nunca esfriou. Cecília amava em Elisa aquela capacidade doce e serena de cuidar de si mesma, dos outros, de uma causa, de uma idéia... e Elisa amava a maneira como Cecília era forte, decidida e corajosa.
Em uma bonita manhã de sol, Elisa acordou sem imaginar que aquele dia seria um dia para grandes mudanças para sua vida.
Os pais de Elisa reuniram a família e anunciaram com olhos arregalados de preocupação, que haviam decido se mudar, o pai de Elisa recebera uma proposta de emprego que não poderia recusar e toda a família se mudaria, para longe.
Elisa ouviu sem mover um músculo do rosto, de repente as lembranças da escola, da sua cidade, da biblioteca que tanto amava e o rosto de Cecília tomaram sua mente. Uma dor que começou pequena dentro dela começou a crescer e rapidamente se tornou tão grande que não coube dentro de Elisa, através dos seus olhos, escorregou pelo rosto.
E de repente a necessidade de ver Cecília foi tão grande que ela saiu correndo, sem esperar o fim da conversa. Mas ainda pôde ouvir uma última frase, que continuou ecoando em seus ouvidos: “iremos em um mês...”
Quando contou para Cecília chorando o que estava acontecendo, Cecília como sempre recorreu ao seu lado rebelde: deu várias sugestões de como elas poderiam fugir, como Elisa podia morar com ela e sua mãe... tantas sugestões e as duas sabiam que nenhuma delas ia salvá-las do futuro iminente: iriam se separar, não estariam mais juntas, todos os dias...
Choraram, tanto como nunca tinham chorado antes.
Os dias que se seguiram para as duas, estavam sem nenhuma cor.
O dia que Elisa partiu, para Cecília, foi o pior dia da sua vida. Elas ficaram abraçadas muito tempo, antes haviam levado horas para decidir com quem ficaria todos os objetos e livros que dividiam, uma querendo deixar com a outra um pedacinho de si.
Prometeram escrever sempre, nunca perder o contato e se encontrarem em todas as férias. E a promessa era verdadeira e sincera.
Mas o tempo, ah o tempo, ele prega peças nas vidas de todos.
Elisa e Cecília se corresponderam sim, por anos. Mas estas cartas foram chegando cada vez mais com um espaço de tempo maior. A saudade que as duas sentiam era grande e a amizade era genuína, mas não dividir o dia-a-dia e não conhecerem as mesmas pessoas foi ficando cada vez mais difícil.
Até que sem que as duas se dessem conta, o tempo havia se encarregado de fazê-las se acostumar a serem sozinhas novamente.
E as cartas pararam de chegar.
A saudade agora estava amena e elas se lembravam uma da outra apenas como uma peça muito importante do passado.
Anos depois, Cecília já adulta e com dois filhos, eram gêmeos, uma menina e um menino, que possuíam seus meus cabelos revoltos e o mesmo olhar vibrante, Cecília estava a caminho da escola. Havia se mudado para aquela cidade grande há dois anos, quando ela e seu marido decidiram morar mais perto da avó paterna das crianças, que estava doente.
Cecília dirigia e olhava pelo retrovisor uma vez ou outra, para certificar-se de que as crianças estavam conversando e não brigando, o que era muito comum.
Parou quando o farol ficou vermelho e estava aguardando os pedestres atravessarem a rua, quando Elisa parou seu carro ao lado do de Cecília. Foi Cecília quem a reconheceu primeiro e a chamou, gritando seu nome. Quando Elisa a reconheceu, um enorme sorriso se formou em seu rosto, as duas davam pequenos gritinhos de alegria, assim como faziam quando crianças.
O farol abriu. As buzinas atrás das duas começaram a soar e Elisa fez um sinal para Cecília de que iria estacionar.
Quando as duas se abraçaram, com lágrimas caindo silenciosamente pelos seus rostos e tocando seus ombros, foi como se o tempo não tivesse passado. Como se sempre tivessem estado uma ao lado da outra. Ali na calçada onde estão paradas inconscientes do mundo ao redor, as duas são almas gêmeas que se reencontram e não precisavam estar por perto, todo o tempo, para sentir que se amavam. Era mesmo uma amizade para sempre, afinal. Mesmo com a distância e a falta de contato.
Conversaram muito. Cecília achou Elisa tão linda, que não acreditou que ela nunca se casou e ficou muito orgulhosa quando soube que ela era uma executiva muito importante do ramo jornalístico. E Elisa, ao conhecer os gêmeos, não conseguia conciliar que aquela garotinha travessa que planejou viajar o mundo todo e ser astronauta agora era uma pacata e estável mãe de família.
Ao se despedirem no final da tarde, surgiu uma pontada de dor no coração das duas. Quantos anos se passaram sem que ao menos conversassem! Trocaram os números de celulares e endereços de e-mail.
E cada uma, voltou para sua vida.
As duas, ao mesmo tempo, lembrando uma da outra com um sorriso crescendo de dentro para fora até se libertar nos lábios... Prometendo silenciosamente a si mesmas que fariam de tudo para não perderem o contato de novo.
Elisa se foi, sonhando com uma família, bonita como a de Cecília e sonhando em ter em seus olhos aquele mesmo calor materno que viu nos olhos vibrantes de Cecília.
E Cecília se foi sonhando com sua vida profissional, imaginando que gostaria de conquistar independência e estabilidade, como Elisa.
E as duas perdidas em pensamentos, simplesmente descobriram: Ainda eram as mesmas meninas. Cada uma com suas qualidades peculiares, mas cada uma sentindo um enorme orgulho da outra.
Totalmente diferentes, mas profundamente ligadas, como almas gêmeas.
E por isso, eram duas peças de um encaixe perfeito no universo.
Amigas para sempre.
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011 2 comentários

Minha pequena bailarina


Eu estava em um dia comum, voltando para casa. No caminho, não pensava em nada a não ser em tudo que precisava estudar, em tudo que precisava fazer e tentando achar um meio de mudar tudo que não estava do jeito que eu queria, na minha vida. Por isso, ia mal-humorada sentada no metrô.
Eu cheguei em casa e procurei abrir as janelas e me dirigi ao quarto, onde sempre deixava a minha bolsa.
Foi quando a vi.
Fiquei muito mais surpresa que assustada.
Era uma garotinha. Não podia ter mais que seis anos de idade. Seus cabelos eram azuis... e estavam presos em um uma espécie de coque no alto da cabeça, era possível ver algumas pequenas flores cor de rosa como a segurar o coque. Ela estava vestida com um lindo vestido de bailarina, quase do mesmo tom de seus cabelos, um azul celeste. O vestido possuía detalhes em prata no corpete minúsculo e a saia possuía várias camadas de tule.
Eu podia vê-la de perfil de onde estava. A menina estava sentada, muito delicada, com as mãos sobre o colo. Em seu pescoço havia um delicado colar de pérolas e eu percebi que ela calçava sapatilhas de balé cor de rosa e seus pezinhos estavam parados em uma das posições do balé, mas ela não parecia fazer esforço, era como se seus pezinhos tivessem parado naquela posição naturalmente.
Eu me aproximei um pouco mais e notei que ela chorava. Chorava de uma maneira sentida, o que me comoveu ainda mais por ser um choro silencioso. Seu corpinho de vez em quando se movia, com um soluço leve.
Foi quando ela olhou para mim.
Sua pele era branca. Os olhos pareciam duas lagoas profundas, eram olhos grandes, de um tom de cinza que eu jamais tinha visto e possuía cílios muito longos, que estavam molhados de lágrimas. Sua boca pequenina não emitiu nenhum som, mas seus olhos encontraram os meus e foi como se os reconhecesse.
Não consegui falar, não sabia o que dizer, só pensava em como gostaria de encontrar um sorriso naquele rostinho frágil ao invés de olhos tão tristes.
Ela se levantou e lentamente, ainda olhando em meus olhos, sem que eu esperasse, tentou me abraçar alcançando a cintura e como não conseguiu, abraçou uma das minhas pernas.
Ela era tão pequena... Seu choro agora não estava mais silencioso, ela soluçava e seu desespero me tocou. Não percebi quando uma lágrima rolou pelo meu rosto.
Com algum esforço, fiz com que ela soltasse minha perna e me abaixei para abraçá-la, ela enlaçou meu pescoço com os bracinhos pequenos e encostou a cabeça em meu ombro.
E chorou por um longo tempo.
Eu a levantei do chão e ela ficou assim em meu colo. Estávamos abraçadas por um longo tempo, até que seus soluços foram diminuindo e devagar coloquei minha mão em sua cabecinha e ela me olhou, não sorriu, seus lábios formavam um biquinho que estava tremendo, provavelmente segurava a vontade de continuar chorando.
Meu olhar para ela deve ter sido de muito pesar, porque ela me olhou preocupada e logo senti as mãozinhas segurarem minhas bochechas com muito carinho e um beijo foi depositado em uma delas.
Pensando nesse momento depois, nunca entendi como uma pessoa racional como eu, podia estar ali, com uma menina de cabelo azul, que eu não sabia de onde tinha vindo, sem trocar uma palavra e agindo como se a conhecesse há muito tempo.
Levei-a comigo para a cama e a fiz sentar em meu colo, de frente para mim. Ela me olhou com seus grandes olhos cinzas e fez um biquinho, olhou para as mãozinhas que estavam sobre seu colo e mais uma lágrima rolou pelo rostinho branco...
Ainda temendo quebrar o momento mágico, mas querendo desesperadamente fazer alguma coisa para ver naqueles olhos pelo menos um pequeno brilho de alegria, perguntei, num tom que mais pareceu um sussurro:
- Você quer me contar porque está chorando?
Ela fechou os olhinhos apertando-os e chorando mais, abraçou novamente meu pescoço e numa voz doce e melodiosa, disse entre soluços:
- Eu... era... uma bo-borboleta. Eu... só se-sei voar... mas... não co-consigo mais...
Eu não sabia o que dizer. Não é possível que eu estivesse perdendo a sanidade. O corpinho pequeno e com medo que me abraçava naquele momento era muito real.
Fiquei assim, sem saber o que dizer por muito tempo, não sabia como ajudá-la. O problema dela parecia agora, muito maior que os meus e eu não sabia o que fazer.
Ora, isso é o tipo de coisa que acontece em contos de fadas, mas porque eu estava na história? Logo uma pessoa tão realista como eu?
Ela não me pediu ajuda, mas me olhava com expectativa, parece que ela acreditava realmente que eu pudesse fazer alguma coisa por ela...
Eu não sei ao certo em que momento a idéia me ocorreu, mas de repente me lembrei que ela usava sapatilhas de bailarina... e eu não dançava há tanto tempo...
Mesmo sem saber direito o que estava fazendo e se aquilo era mesmo o certo a fazer num momento como aquele, decidi. Olhei para ela e tentei o meu melhor sorriso, tentando ser confiante e apontando para suas sapatilhas cor de rosa eu disse:
- Você sabe o que é isso?
Ela balançou a cabecinha lentamente dizendo que não.
- Pois eu vou lhe mostrar...
Eu a segurei nos braços novamente e lhe coloquei de pé. Ela levantou a cabecinha para me olhar... para ela eu era muito alta. Segurei suas mãozinhas pequenas e levantei seus bracinhos, eles formaram um arco por cima de sua cabecinha. Ela olhou para um bracinho e depois para o outro e não disse nada, mas eu ri da expressão de dúvida de seu rostinho, como se me achasse maluca. Seu olhar desconfiado me obrigou a dizer:
- Tudo bem, solte os braços então... só... me acompanhe.
Comecei a dançar, mas apenas um passo de cada lado de forma a montar um ritmo. A garotinha relutou um pouco, mas começou a me acompanhar...
Nada e ninguém no mundo poderia ter me preparado para o que aconteceu em seguida.
Assim que a garotinha começou a dançar, uma música, vinda não sei de onde, começou a tocar e a garotinha começou a dançar de uma maneira graciosa, leve e empolgante ao mesmo tempo, seu rosto acompanhava os movimentos dos bracinhos e os passos foram ficando na pontinha do pé, desenhando belíssimas piruetas e saltos dignos de uma grande bailarina...  
Eu estava encantada. De repente, eu a ouvi dizer:
- Ju, é como... é como... voar!
Ela parou de dançar, olhou-me com seus grandes olhos cinzas agora vibrantes e realizou aquele que havia passado a ser meu maior sonho: deu-me o sorriso que me pareceu ser o sorriso mais lindo do mundo... Ao colocar ambas as mãozinhas no queixo, correu para me abraçar... Eu não consegui me conter, chorava e sorria... Era como se nada no mundo importasse, a não ser o sorriso daquela garotinha de cabelo azul. Eu a peguei novamente no colo e ficamos girando pelo quarto, ela de bracinhos abertos, rindo... uma risada cristalina e alegre.
Mais tarde naquele dia, conversamos muito. Eu ainda não sabia explicar como uma personagem de contos de fadas tinha ido parar no meu quarto. Ela me contou que vivia em um mundo encantado, antes ela era uma borboleta azul com detalhes cor de rosa...
Ela não sabia porque havia se transformado numa garotinha bailarina,  nem sabia como havia ido parar no meu quarto.
Mas eu sabia.
Ela estava ali, por minha causa.
Deus queria me fazer entender que as mudanças eram necessárias.
E as mudanças podem ser: reinventar o que já temos ou criar algo novo. O importante é nos fazer feliz.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011 1 comentários

Saudade do que não vivemos


Carta ditada ontem por um paciente cego, escrita por uma das enfermeiras em um hospital de uma cidade cujo nome não é importante.

Minha querida,
Tenho a esperança que lendo essas linhas, você compreenda e me perdoe por tudo que aconteceu.
Começamos a namorar muito jovens e logo se tornou sério demais. Fomos cúmplices, amantes, amigos... Mas sempre pelas pequenas coisas, eu me irritava.
E era sempre assim: você chorava, se dizia arrependida e eu voltava.
Voltei tantas vezes, que não acreditava mais nas suas lágrimas, nas palavras doces ao telefone e nos pedidos de desculpas.
Comecei a me afastar, primeiro devagar, saindo mais tarde do trabalho, chegando atrasado aos nossos encontros e depois eu fui esquecendo de te procurar, fomos passando um dia ou dois sem nos ver, enquanto você, como sempre, naquela ladainha melodramática que não enganava mais ninguém.
Cada vez que você chorava, ou dizia estar com saudade, era como uma penitencia. Eu chegava a desviar os olhos daquele biquinho infantil que você fazia, com irritação. Eu não conseguia entender como você conseguia seguir com aquilo por tantos dias. Suas cartas começaram a me parecer grandes demais, difíceis de ler e principalmente cansativas. Seus cuidados e preocupações comigo eram tantos chatos que eu me questionava porque estava num relacionamento com alguém que achava que era minha mãe. Deixamos de nos chamar por nomes carinhosos e se antes, assistíamos filmes juntos e líamos os mesmos livros para discutirmos depois, isso mudou depois de um tempo: eu preferia ver filmes sozinho e escolhia sozinho os livros que eu queria ler.
Fui me apaixonando cada vez mais pela minha independência e estava cada vez mais cansado de você. Cada vez com menos vontade de te ver. Procurava pretextos e motivos para não voltar pra casa logo e fazia o possível para não te encontrar “por coincidência”.
Até que um dia você estava me esperando na saída do meu trabalho. E não estava com um dos seus costumeiros vestidos que antes eram tão encantadores. Eu quase não te reconheci de calça jeans folgada, camiseta e tênis, eu nunca acreditaria se me contassem, que naqueles pés que só calçavam salto quinze estavam agora, tênis All-Stars! Achei graça e logo me dei conta de que você queria chamar a minha atenção com aquelas roupas, me mostrar que estava diferente. Enquanto eu me obrigava a ir em sua direção, já que infelizmente eu não podia te ignorar, afinal, ainda era um rapaz educado, eu pensava “por qual situação eu vou ter que passar agora, ela vai chorar aqui na rua, vai me cobrar que não tenho mais tempo pra ela, logo aqui? E o que eu vou fazer pra me livrar dela?”. Mas eu logo me surpreendi: você sorriu quando eu me aproximei, o que já me deixou alerta. E então, com uma calma que me pareceu bem natural, você disse:
- Eu vim me despedir. Estou me mudando, aceitei um emprego em outro lugar.
Ah, que sorte a minha, com um esforço exagerado para não deixar transparecer alívio, te desejei boa sorte, você me abraçou e foi.
Nunca pensei nessa despedida, porque roupas diferentes, porque você estava tão calma, porque resolveu ir embora. Eu só conseguia sentir a alegria de estar de novo sozinho.
Aquele dia foi glorioso. Eu saí de noite com os amigos e entre várias bebidas conheci muitas pessoas e nunca, havia rido tanto ou me divertido tanto. O mundo se abriu. Todas as escolhas, todas as programações, eu podia fazer qualquer coisa e sozinho, quando eu quisesse, sem depender da agenda e dos compromissos de ninguém. Quando fui dormir, abençoei a liberdade fora daquele relacionamento grudento e nunca me senti tão vivo e ansioso pelo dia seguinte: o dia depois do primeiro dia de liberdade!
Quando acordei no dia seguinte, automaticamente lembrei de você, procurei por qualquer mensagem escrita que podia ter deixado ao lado da cama, como sempre fazia. Mas não tinha mensagem nenhuma. Me lembrei: “É claro! Ela foi embora, não tem mais aquelas mensagens com bom dias, te amos e saudades... essa é a liberdade, cara! Você não tem mais obrigações, sem mensagem de bom dia, sem telefonemas no trabalho, sem aquele cuidado excessivo com as suas roupas!” Sorri e de propósito peguei para usar aquele jeans que não estava passado. Sim, era um ato de rebeldia, eu estava feliz. Fazia as coisas do meu jeito.
Os dias que se seguiram foi a maior farra, eu saía com os amigos, encontrava algumas garotas, me divertia muito... e foram dias incríveis.
Eu não via o tempo passar e logo, eram meses incríveis que já haviam se passado e eu nem sequer me lembrei de você.
Até um dia em que uma gripezinha sem importância aconteceu. Eu disse a mim mesmo que logo iria melhorar e voltar a minha vida de antes, mas aquela noite não dava pra sair, eu teria que ficar em casa, a dor de cabeça e o corpo dolorido não favoreceriam minha noite.
E foi então que percebi que se eu não podia sair para a noite com os amigos, ninguém iria para minha casa me ver, eu não tinha amigos assim. Percebi que ninguém me ligou para perguntar como eu estava.
E foi a primeira vez que senti sua falta. Dos carinhos que me daria, de como cuidaria de mim, dos chás que você me obrigaria a tomar e de como iria comigo para a cama, mexer no meu cabelo até eu dormir.
E muito a contragosto, depois disso, senti sua falta muitas vezes.
Percebi que aqueles que me acompanhavam como amigos, e aquelas garotas que eu saía não eram pessoas que se importavam comigo de verdade.
Comecei a sentir saudade de você.
E não demorou muito para um pensamento nascer: “Onde ela está agora?”
Depois que percebi o quanto aquela vida era vazia e o quanto sentia sua falta, nunca mais houveram noitadas, saídas com muitas garotas e muitas bebidas.
Meus supostos amigos me chamavam de careta e as garotas desistiram de me procurar.
Eu só pensava no seu carinho, no seu cuidado e no quanto eu queria de novo que você grudasse em mim, o quanto eu queria de novo aquelas mensagens de bom dia. Eu era um novo arrependido, eu tinha tudo que precisava e fui procurar na rua o que eu já tinha: alguém que me amava.
Decidi: não podia deixar as coisas assim, eu tinha que te procurar.
Muitos dias se passaram. Eu te procurei na casa dos seus pais, perguntei para amigos, tudo que eu podia fazer, eu fiz. E nada. Não conseguia te encontrar em lugar nenhum. Todos me diziam que você tinha comprado uma casa longe e não queria ser encontrada. Eu entendi. Não queria me ver, não queria falar comigo.
Era um sábado de sol exagerado quando recebi carta com um endereço. Foi a sua irmã quem me enviou.
Logo uma alegria exultante cresceu em mim e sem perder tempo, segui para o endereço, eu mal acreditava! Eu ia te encontrar de novo!
O caminho era longo, mais de três horas de viagem, mas eu não me importei e não parei uma vez sequer. Mas quanto mais eu via os quilômetros ficando para trás, mais crescia dentro de mim uma apreensão: e se você tivesse me esquecido? E se você não me perdoasse mais?
Decidi não pensar no pior e estacionei o carro em frente a sua casa. Sorri pensando que aquele era o tipo de casa em que eu te imaginava morando mesmo: simples, elegante, clara e com grandes janelas. Na frente havia grama e um canteiro muito bem cuidado de miesóstis. Claro, aquela era sua casa, eram as suas flores. Era o tipo de casa que tinha amor.
Enquanto eu respirava fundo e tentava encontrar coragem para bater à sua porta, esta se abriu. E eu vi você: linda... de vestido estampado azul, os cabelos loiros mais curtos e aquele mesmo jeito de andar que eu conhecia tão bem. Você não me viu. Parado ali dentro do carro, quase ouvi música te vendo, parecia que você caminhava em câmera lenta, eu fiquei paralisado, sentindo a saudade pesada no peito oprimir meus sentidos. Você caminhou por entre a grama e poucos passos depois se virou e sorriu para uma criança parada à soleira da sua porta. Um menino. Não soube identificar a idade dele. Meu coração gelou, eu não pude acreditar. Não queria acreditar. Ele tinha a mesma cor de cabelos, o mesmo tom. Eu não tive dúvidas, era seu filho.
Dei um soco no painel do carro, deveria ter doído, mas não doeu. Tive raiva. Muita raiva. Quer dizer que depois de toda aquela paixão, de todo aquele amor que dizia sentir, tão pouco tempo depois você tinha uma família.
De repente entendi: era isso que a sua irmã queria que eu visse então, que você estava feliz, casada e tinha um filho. Ela queria que eu soubesse disso e parasse de te procurar.
Você não me amava tanto, se me esqueceu em tão pouco tempo. Naquele momento, deixei lágrimas de frustração escaparem dos meus olhos, lágrimas que eu acreditava serem de raiva, de amargor e não de arrependimento, como de fato eram.
Como eu pude deixar você ir? Como eu pude te perder? Porque eu não tentei impedir que você partisse?
Eu sabia que não tinha mais o direito de te pedir, de te procurar, de dizer que te queria de volta.
Você tinha uma família agora. E eu não fazia mais parte da sua vida.
O caminho de volta pra casa foi o mais longo da minha vida. Eu estava sem chão, sem perspectiva, sem vontade de fazer mais nada, a não ser deitar e dormir. Só dormir. Dormindo eu não lembraria, eu não sentiria.
Dormi por muitos dias, acordava só para comer qualquer coisa que tivesse na geladeira e nem sentia o gosto. O arrependimento e a dor de ter perdido você não passaram. Eu quis tanto, desejei com tanto fervor poder voltar no tempo, poder mudar tudo.
Ou estar naquela casa com você. Eu me imaginei muitas vezes naquela cena em que você sorria para o menino à soleira da porta. Eu sairia também de dentro da casa, pegaria o menino no colo e sorrindo beijaria você.
Mas essa não era a realidade. Eu não vi o outro que podia fazer isso, que podia te beijar, que provocava seu riso, que te abraçava. Mas eu o amaldiçoei com todas as minhas forças, só não mais que a mim mesmo, era eu quem deveria estar lá com você.
Meses se passaram. Voltei a trabalhar. Só trabalhar. Nada mais fazia sentido. Ninguém te substituía, ninguém nunca poderia fazer isso. Ninguém era doce o suficiente, ninguém era como você, ninguém se preocuparia comigo como você. Só o trabalho interessava, só ele para preencher o vazio.
Muitos anos depois, eu tinha dinheiro, mas nenhum amigo. Ninguém para comemorar os natais, ninguém para se importar comigo. Eu me descuidei da saúde e quando percebi, já era tarde demais. Eu estava ficando cego.
Usei meu dinheiro para me internar num lugar onde poderia viver com dignidade a minha cegueira, mas o dinheiro acabou logo. Anos depois, vim parar nesse hospital, onde todos têm muita boa vontade, mas muito poucos recursos.
Já estou velho. Meu rosto já não é o mesmo, eu sinto as rugas e a falta de cabelo no topo da cabeça quando me toco. Eu desisti há muitos anos de te procurar, tento me conformar por todos esses anos que você não vai estar comigo, nunca mais.
Por isso, você pode imaginar em que estado estava meu coração hoje e como fiquei perplexo ao ouvir a sua voz. Claro, bem mais velha do que eu me lembrava, mas com a mesma doçura.
Chorei e tentei te mandar embora. Eu não queria que me visse desse jeito, não queria que soubesse que estraguei a minha vida, que não construí uma família como a sua. Desesperado, quis te mandar embora e fingir que nunca tinha te encontrado de novo. Sentia inveja da vida que você teve, com a família que você construiu. E eu te disse isso.
E era melhor não ter dito.
Era melhor que tivesse conseguido te mandar embora.
Porque eu não queria saber, eu preferia não saber, do que me contou.
Com uma pontada de nova dor no peito, perguntei ansioso:
- Como, você não se casou? Eu vi você com a criança.
- Seu filho.
Meu filho?

Espera.

Meu filho?
A dor no peito ficou maior, senti uma falta de ar horrível e chorei, chorei muito.
Até agora, que você já foi embora, ainda tento me acostumar com essa nova dor. Eu pensei que já tinha motivos suficientes para me arrepender, mas não.
Eu deveria ter falado com você aquele dia! Aquele era meu filho! Você foi embora porque achou que eu não ia querer um filho e doeu pensar que você tinha razão, eu só pensava em ser livre aquela época. Mas eu podia ter feito diferente, tudo podia ter sido diferente se eu tivesse te procurado, se eu tivesse te pedido perdão.
Você e aquele garotinho que agora, já é um homem...
Vocês eram minha família.
Poderiam ter sido.
Eu pensei que já tinha sofrido por arrependimento tudo o que tinha que sofrer, mas essa dor é nova.
É dor por todos os anos que perdemos. Por todo o tempo e tudo que poderíamos ter sido.
E não fomos.
Não seremos mais.
Nem meu filho eu posso ver, meu corpo ficou cego há poucos anos, mas eu, eu já era cego para a vida, para o amor, há muitos anos.
E eu aprendi, minha querida: pior do que nos arrepender pelo que somos, é nos arrepender por tudo que poderíamos ter sido... e não fomos.
Me perdoa.
E se puder, volte mais vezes. Ainda quero poder ouvir sua voz.

Sempre seu.
Eu.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2011 1 comentários

Serendipity




Eu costumava sentar perto da janela do meu quarto com um livro nas mãos e ficar olhando para fora, observando o que acontecia na rua. Via crianças brincando, namorados andando de mãos dadas, vizinhos conversando... e como eu não podia ouvi-los, havia muitas situações engraçadas porque eu tentava dublar do meu jeito o que estavam falando. Eu imaginava os diálogos engraçados, otimistas que faziam valer a pena o dia das pessoas. Eu observava os outros enquanto vivia esperando que a minha história enfim começasse um dia, que eu tivesse um acontecimento importante que valesse a pena ser contado mesmo depois de muitos anos, mas esse momento estava demorando uma eternidade.

E foi em uma manhã chuvosa que encontrei você. Eu estava carregando os livros e os cadernos da escola como se pesassem muitos quilos e andava na rua com a cabeça baixa – não sei porque sempre abaixamos a cabeça quando esta chovendo – quando notei alguém sentado do outro lado da rua, despreocupadamente como se não se importasse com os pingos gelados de água que escorriam pelo seu rosto. Olhei para você, não porque estava bem vestido, nem porque até que era bonito, mas porque você sorria. E era pra mim. Eu sabia que não era um sorriso comum, sabia que não era uma simples cantada de rua, eu sabia que aquele sorriso era genuíno e automaticamente algumas borboletas começaram a voar dentro do meu estomago. Você não falou comigo, nem nesta manhã chuvosa, nem em todas as manhãs que se seguiram, chuvosas ou não. Mas você estava sempre lá. Todas as manhãs quando eu caminhava até a escola. Eu te via escolhendo pêssegos na barraca de frutas, comprando o jornal da banca próxima à esquina e algumas vezes você só estava parado, com as mãos nos bolsos, sempre com aquele ar despreocupado. Mas o mais importante de todas essas manhãs, é que seu sorriso estava sempre lá para mim e as borboletas no meu estomago também.

Nunca me permiti fazer perguntas demais: onde você morava, porque todos os dias estava lá e porque só sorria para mim. Você era só a presença do sorriso mais cativante do mundo, uma presença que fazia todos os meus dias serem melhores desde que esse sorriso apareceu. E eu tinha certeza que o sorriso era para mim. E ter um sorriso de alguém, feito para você, um sorriso que nascia só de me ver, um sorriso que fazia as borboletas do meu estomago voarem freneticamente... era como acender uma luz bem no meu coração.

Foi em uma linda manhã também chuvosa, como no primeiro dia que nós nos vimos, que a minha vida mudou. Eu ia para a escola, como todos os dias observando todos os lugares, tentando adivinhar onde eu encontraria você. Eu usava um guarda-chuva vermelho para me proteger da chuva, quando me deparei com uma frase, escrita na parede de um prédio próximo a barraca de frutas: “Por uma coincidência feliz, encontrei você naquela manhã chuvosa”. Achei interessante como aquela frase se parecia conosco, como se tivesse sido você quem escreveu e sorri, pensando em como seria bom se as borboletas que existiam no meu estomago, existissem também no seu.
Andei um pouco mais e na esquina da banca de jornal, outra frase escrita dizia: “Venho tentando encontrar uma forma de te dizer como me sinto quando te vejo, todas as manhãs”. Comecei a sentir falta de ar e as borboletas voavam tanto dentro de mim, que eu chegava a quase sentir náuseas, seria possível que essas frases fossem para mim?
 
Sem querer continuar pensando e me recusando a ter esperança, desviei os olhos da frase escrita na parede e me virei para atravessar a rua... e você estava bem no meio da rua, deixando a água cair sobre você e com aquele sorriso que eu conhecia tão bem, aquele meu sorriso.

E de repente, eu não sabia o que fazer. Imóvel, observei você caminhar lentamente até bem próximo de mim e ouvi sua voz pela primeira vez.

Me lembro de não ter escutado bem o que você disse, porque o impacto da sua voz rapidamente me embaraçou. Sua voz era forte, mas doce. Alegre mas receosa. Clara, mas misteriosa. Você percebeu minha confusão e repetiu:

- Você sabia que as coincidências felizes tem um nome?

Eu demorei um pouco para responder. Estava ainda sobre o efeito da sua voz. E me critiquei imaginando que você me acharia boba.

- E esse nome não seria “destino”?

Me critiquei novamente, que coisa estúpida de se dizer, eu deveria parecer mais inteligente. Você respondeu:

- O destino é como karma. Traz o que você precisa encontrar, não necessariamente feliz. Essa coincidência que me trouxe você, é um acontecimento que só deve ser permitido quando Deus está muito feliz.

Quando você me disse isso, eu esqueci que sabia falar, abri a boca para responder e não consegui. Você se aproximou mais e já bem perto de mim, pegou o meu guarda-chuva vermelho, fechou-o lentamente e a chuva começou a tocar em mim, muito gelada, mas eu não sentia nada. E por fim você disse:

- Serendipity. O nome das coincidências felizes é serendipity.

E enquanto a chuva caia sobre nós dois e eu me esquecia do mundo todo, você me beijou.

A partir desse dia, você me acompanhava até a escola todas as manhãs e eu descobri que não era só o seu sorriso que eu amava. Sua voz, seu jeito de levantar as sobrancelhas fazendo graça para eu rir, o carinho com que me olhava, tudo me encantava.

Passamos a dividir os pêssegos da barraca de frutas e nos sentávamos na praça para ler o jornal, antes de você me acompanhar até a escola.

Os dias foram passando e cada vez mais, dividíamos mais e mais coisas... Me lembro das tardes de sábado que passávamos deitados na grama adivinhando as formas das nuvens e dos passeios no parque que acabavam em sorvete, me lembro das tardes que fugíamos para o cinema e ficávamos de mãos dadas no escuro e de como dançávamos a noite, me lembro da primeira vez que caminhamos juntos na areia da praia à noite e me lembro de todos os seus sorrisos e de todas as vezes que eles se transformavam em gargalhada, principalmente quando assistíamos filmes de comédia e apostávamos quem conseguia ficar mais tempo sem rir.

O meu mundo passou a ser colorido. Colorido pelo seu sorriso e pela sua presença. E todos os dias, quando eu acordava e sabia que ia te ver, eu agradecia a serendipity, a coincidência feliz que me fez te encontrar naquela manhã de chuva.

E essa palavra passou a fazer parte do nosso dia-a-dia, porque todas as vezes que descobríamos mais alguma coisa em comum entre nós, dizíamos que era serendipity.

Nós éramos felizes.

Até que o destino chegou. Foi num dia ensolarado, e foi assim que os dias ensolarados passaram a ser tristes para mim.

Nesse dia, você devia estar me esperando no portão para irmos juntos para a escola. Mas você não estava lá.

E não apareceu depois da aula e nem em todos os dias seguintes.

Eu procurei você, procurei na sua casa, nos telefones e de todas as formas.

Você não estava mais lá no caminho da escola para sorrir para mim e sem o seu sorriso colorindo minha vida, meu mundo ficou preto e branco.

Eu penso sempre em você e me pergunto o que terá acontecido para você não estar aqui comigo e muitas vezes imagino histórias mirabolantes, às vezes até me convenço que você foi seqüestrado por algum alienígena, mas as vezes não sou tão otimista e penso que seu amor acabou. Mas não quero acreditar nisso. Alguma coisa muito importante aconteceu para nossas vidas não estarem juntas. E um dia, ainda quero saber o que aconteceu.

Estou esperando um novo fim para nossa história.

E mesmo hoje, anos depois, ainda estou sozinha. E sorrio sozinha e saio com meu guarda-chuva vermelho em todas as manhãs chuvosas, esperando que um serendipity te traga de novo pra mim.
 
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