sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Saudade do que não vivemos


Carta ditada ontem por um paciente cego, escrita por uma das enfermeiras em um hospital de uma cidade cujo nome não é importante.

Minha querida,
Tenho a esperança que lendo essas linhas, você compreenda e me perdoe por tudo que aconteceu.
Começamos a namorar muito jovens e logo se tornou sério demais. Fomos cúmplices, amantes, amigos... Mas sempre pelas pequenas coisas, eu me irritava.
E era sempre assim: você chorava, se dizia arrependida e eu voltava.
Voltei tantas vezes, que não acreditava mais nas suas lágrimas, nas palavras doces ao telefone e nos pedidos de desculpas.
Comecei a me afastar, primeiro devagar, saindo mais tarde do trabalho, chegando atrasado aos nossos encontros e depois eu fui esquecendo de te procurar, fomos passando um dia ou dois sem nos ver, enquanto você, como sempre, naquela ladainha melodramática que não enganava mais ninguém.
Cada vez que você chorava, ou dizia estar com saudade, era como uma penitencia. Eu chegava a desviar os olhos daquele biquinho infantil que você fazia, com irritação. Eu não conseguia entender como você conseguia seguir com aquilo por tantos dias. Suas cartas começaram a me parecer grandes demais, difíceis de ler e principalmente cansativas. Seus cuidados e preocupações comigo eram tantos chatos que eu me questionava porque estava num relacionamento com alguém que achava que era minha mãe. Deixamos de nos chamar por nomes carinhosos e se antes, assistíamos filmes juntos e líamos os mesmos livros para discutirmos depois, isso mudou depois de um tempo: eu preferia ver filmes sozinho e escolhia sozinho os livros que eu queria ler.
Fui me apaixonando cada vez mais pela minha independência e estava cada vez mais cansado de você. Cada vez com menos vontade de te ver. Procurava pretextos e motivos para não voltar pra casa logo e fazia o possível para não te encontrar “por coincidência”.
Até que um dia você estava me esperando na saída do meu trabalho. E não estava com um dos seus costumeiros vestidos que antes eram tão encantadores. Eu quase não te reconheci de calça jeans folgada, camiseta e tênis, eu nunca acreditaria se me contassem, que naqueles pés que só calçavam salto quinze estavam agora, tênis All-Stars! Achei graça e logo me dei conta de que você queria chamar a minha atenção com aquelas roupas, me mostrar que estava diferente. Enquanto eu me obrigava a ir em sua direção, já que infelizmente eu não podia te ignorar, afinal, ainda era um rapaz educado, eu pensava “por qual situação eu vou ter que passar agora, ela vai chorar aqui na rua, vai me cobrar que não tenho mais tempo pra ela, logo aqui? E o que eu vou fazer pra me livrar dela?”. Mas eu logo me surpreendi: você sorriu quando eu me aproximei, o que já me deixou alerta. E então, com uma calma que me pareceu bem natural, você disse:
- Eu vim me despedir. Estou me mudando, aceitei um emprego em outro lugar.
Ah, que sorte a minha, com um esforço exagerado para não deixar transparecer alívio, te desejei boa sorte, você me abraçou e foi.
Nunca pensei nessa despedida, porque roupas diferentes, porque você estava tão calma, porque resolveu ir embora. Eu só conseguia sentir a alegria de estar de novo sozinho.
Aquele dia foi glorioso. Eu saí de noite com os amigos e entre várias bebidas conheci muitas pessoas e nunca, havia rido tanto ou me divertido tanto. O mundo se abriu. Todas as escolhas, todas as programações, eu podia fazer qualquer coisa e sozinho, quando eu quisesse, sem depender da agenda e dos compromissos de ninguém. Quando fui dormir, abençoei a liberdade fora daquele relacionamento grudento e nunca me senti tão vivo e ansioso pelo dia seguinte: o dia depois do primeiro dia de liberdade!
Quando acordei no dia seguinte, automaticamente lembrei de você, procurei por qualquer mensagem escrita que podia ter deixado ao lado da cama, como sempre fazia. Mas não tinha mensagem nenhuma. Me lembrei: “É claro! Ela foi embora, não tem mais aquelas mensagens com bom dias, te amos e saudades... essa é a liberdade, cara! Você não tem mais obrigações, sem mensagem de bom dia, sem telefonemas no trabalho, sem aquele cuidado excessivo com as suas roupas!” Sorri e de propósito peguei para usar aquele jeans que não estava passado. Sim, era um ato de rebeldia, eu estava feliz. Fazia as coisas do meu jeito.
Os dias que se seguiram foi a maior farra, eu saía com os amigos, encontrava algumas garotas, me divertia muito... e foram dias incríveis.
Eu não via o tempo passar e logo, eram meses incríveis que já haviam se passado e eu nem sequer me lembrei de você.
Até um dia em que uma gripezinha sem importância aconteceu. Eu disse a mim mesmo que logo iria melhorar e voltar a minha vida de antes, mas aquela noite não dava pra sair, eu teria que ficar em casa, a dor de cabeça e o corpo dolorido não favoreceriam minha noite.
E foi então que percebi que se eu não podia sair para a noite com os amigos, ninguém iria para minha casa me ver, eu não tinha amigos assim. Percebi que ninguém me ligou para perguntar como eu estava.
E foi a primeira vez que senti sua falta. Dos carinhos que me daria, de como cuidaria de mim, dos chás que você me obrigaria a tomar e de como iria comigo para a cama, mexer no meu cabelo até eu dormir.
E muito a contragosto, depois disso, senti sua falta muitas vezes.
Percebi que aqueles que me acompanhavam como amigos, e aquelas garotas que eu saía não eram pessoas que se importavam comigo de verdade.
Comecei a sentir saudade de você.
E não demorou muito para um pensamento nascer: “Onde ela está agora?”
Depois que percebi o quanto aquela vida era vazia e o quanto sentia sua falta, nunca mais houveram noitadas, saídas com muitas garotas e muitas bebidas.
Meus supostos amigos me chamavam de careta e as garotas desistiram de me procurar.
Eu só pensava no seu carinho, no seu cuidado e no quanto eu queria de novo que você grudasse em mim, o quanto eu queria de novo aquelas mensagens de bom dia. Eu era um novo arrependido, eu tinha tudo que precisava e fui procurar na rua o que eu já tinha: alguém que me amava.
Decidi: não podia deixar as coisas assim, eu tinha que te procurar.
Muitos dias se passaram. Eu te procurei na casa dos seus pais, perguntei para amigos, tudo que eu podia fazer, eu fiz. E nada. Não conseguia te encontrar em lugar nenhum. Todos me diziam que você tinha comprado uma casa longe e não queria ser encontrada. Eu entendi. Não queria me ver, não queria falar comigo.
Era um sábado de sol exagerado quando recebi carta com um endereço. Foi a sua irmã quem me enviou.
Logo uma alegria exultante cresceu em mim e sem perder tempo, segui para o endereço, eu mal acreditava! Eu ia te encontrar de novo!
O caminho era longo, mais de três horas de viagem, mas eu não me importei e não parei uma vez sequer. Mas quanto mais eu via os quilômetros ficando para trás, mais crescia dentro de mim uma apreensão: e se você tivesse me esquecido? E se você não me perdoasse mais?
Decidi não pensar no pior e estacionei o carro em frente a sua casa. Sorri pensando que aquele era o tipo de casa em que eu te imaginava morando mesmo: simples, elegante, clara e com grandes janelas. Na frente havia grama e um canteiro muito bem cuidado de miesóstis. Claro, aquela era sua casa, eram as suas flores. Era o tipo de casa que tinha amor.
Enquanto eu respirava fundo e tentava encontrar coragem para bater à sua porta, esta se abriu. E eu vi você: linda... de vestido estampado azul, os cabelos loiros mais curtos e aquele mesmo jeito de andar que eu conhecia tão bem. Você não me viu. Parado ali dentro do carro, quase ouvi música te vendo, parecia que você caminhava em câmera lenta, eu fiquei paralisado, sentindo a saudade pesada no peito oprimir meus sentidos. Você caminhou por entre a grama e poucos passos depois se virou e sorriu para uma criança parada à soleira da sua porta. Um menino. Não soube identificar a idade dele. Meu coração gelou, eu não pude acreditar. Não queria acreditar. Ele tinha a mesma cor de cabelos, o mesmo tom. Eu não tive dúvidas, era seu filho.
Dei um soco no painel do carro, deveria ter doído, mas não doeu. Tive raiva. Muita raiva. Quer dizer que depois de toda aquela paixão, de todo aquele amor que dizia sentir, tão pouco tempo depois você tinha uma família.
De repente entendi: era isso que a sua irmã queria que eu visse então, que você estava feliz, casada e tinha um filho. Ela queria que eu soubesse disso e parasse de te procurar.
Você não me amava tanto, se me esqueceu em tão pouco tempo. Naquele momento, deixei lágrimas de frustração escaparem dos meus olhos, lágrimas que eu acreditava serem de raiva, de amargor e não de arrependimento, como de fato eram.
Como eu pude deixar você ir? Como eu pude te perder? Porque eu não tentei impedir que você partisse?
Eu sabia que não tinha mais o direito de te pedir, de te procurar, de dizer que te queria de volta.
Você tinha uma família agora. E eu não fazia mais parte da sua vida.
O caminho de volta pra casa foi o mais longo da minha vida. Eu estava sem chão, sem perspectiva, sem vontade de fazer mais nada, a não ser deitar e dormir. Só dormir. Dormindo eu não lembraria, eu não sentiria.
Dormi por muitos dias, acordava só para comer qualquer coisa que tivesse na geladeira e nem sentia o gosto. O arrependimento e a dor de ter perdido você não passaram. Eu quis tanto, desejei com tanto fervor poder voltar no tempo, poder mudar tudo.
Ou estar naquela casa com você. Eu me imaginei muitas vezes naquela cena em que você sorria para o menino à soleira da porta. Eu sairia também de dentro da casa, pegaria o menino no colo e sorrindo beijaria você.
Mas essa não era a realidade. Eu não vi o outro que podia fazer isso, que podia te beijar, que provocava seu riso, que te abraçava. Mas eu o amaldiçoei com todas as minhas forças, só não mais que a mim mesmo, era eu quem deveria estar lá com você.
Meses se passaram. Voltei a trabalhar. Só trabalhar. Nada mais fazia sentido. Ninguém te substituía, ninguém nunca poderia fazer isso. Ninguém era doce o suficiente, ninguém era como você, ninguém se preocuparia comigo como você. Só o trabalho interessava, só ele para preencher o vazio.
Muitos anos depois, eu tinha dinheiro, mas nenhum amigo. Ninguém para comemorar os natais, ninguém para se importar comigo. Eu me descuidei da saúde e quando percebi, já era tarde demais. Eu estava ficando cego.
Usei meu dinheiro para me internar num lugar onde poderia viver com dignidade a minha cegueira, mas o dinheiro acabou logo. Anos depois, vim parar nesse hospital, onde todos têm muita boa vontade, mas muito poucos recursos.
Já estou velho. Meu rosto já não é o mesmo, eu sinto as rugas e a falta de cabelo no topo da cabeça quando me toco. Eu desisti há muitos anos de te procurar, tento me conformar por todos esses anos que você não vai estar comigo, nunca mais.
Por isso, você pode imaginar em que estado estava meu coração hoje e como fiquei perplexo ao ouvir a sua voz. Claro, bem mais velha do que eu me lembrava, mas com a mesma doçura.
Chorei e tentei te mandar embora. Eu não queria que me visse desse jeito, não queria que soubesse que estraguei a minha vida, que não construí uma família como a sua. Desesperado, quis te mandar embora e fingir que nunca tinha te encontrado de novo. Sentia inveja da vida que você teve, com a família que você construiu. E eu te disse isso.
E era melhor não ter dito.
Era melhor que tivesse conseguido te mandar embora.
Porque eu não queria saber, eu preferia não saber, do que me contou.
Com uma pontada de nova dor no peito, perguntei ansioso:
- Como, você não se casou? Eu vi você com a criança.
- Seu filho.
Meu filho?

Espera.

Meu filho?
A dor no peito ficou maior, senti uma falta de ar horrível e chorei, chorei muito.
Até agora, que você já foi embora, ainda tento me acostumar com essa nova dor. Eu pensei que já tinha motivos suficientes para me arrepender, mas não.
Eu deveria ter falado com você aquele dia! Aquele era meu filho! Você foi embora porque achou que eu não ia querer um filho e doeu pensar que você tinha razão, eu só pensava em ser livre aquela época. Mas eu podia ter feito diferente, tudo podia ter sido diferente se eu tivesse te procurado, se eu tivesse te pedido perdão.
Você e aquele garotinho que agora, já é um homem...
Vocês eram minha família.
Poderiam ter sido.
Eu pensei que já tinha sofrido por arrependimento tudo o que tinha que sofrer, mas essa dor é nova.
É dor por todos os anos que perdemos. Por todo o tempo e tudo que poderíamos ter sido.
E não fomos.
Não seremos mais.
Nem meu filho eu posso ver, meu corpo ficou cego há poucos anos, mas eu, eu já era cego para a vida, para o amor, há muitos anos.
E eu aprendi, minha querida: pior do que nos arrepender pelo que somos, é nos arrepender por tudo que poderíamos ter sido... e não fomos.
Me perdoa.
E se puder, volte mais vezes. Ainda quero poder ouvir sua voz.

Sempre seu.
Eu.

Um comentário:

Fernando Gonçalves disse...

Olá. Sigo.
Segue lá o meu ;)
http://carmasepalavras.blogspot.com

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